Volta a Antares


Flávio da Luz de Oliveira

Os raios do sol, espargindo-se desde o oriente, incidiam nas paredes caiadas de branco das casas da vila Jacarecanga, ainda cobertas pelo sereno da noite, formando um painel gigante “encharcado de luz” no cenário natural do teatro da vida cotidiana.

A professora Clarissa, segurando com a mão esquerda o guidom da bicicleta, usava a mão direita em pala à frente dos olhos para proteger-se do brilho intenso da luz e poder vislumbrar o caminho de terra batida. Sempre se levantava cedo para chegar na escolinha da periferia antes das oito horas. Quando dobrou a esquina da rua Pinheiro Machado com a Praça Tiradentes, teve um sobressalto tão grande que, por pouco, não caiu da bicicleta. Sentado ali, casaco de lã axadrezado, camisa branca sem gravata, calças cinza e sapato branco, o seu pai dando milho para os bombos na volta do chafariz.

Parou e encostou a bicicleta num poste de ferro, retirou a bolsa dos livros da meia espalda e dependurou no guidom. Aproximou-se ainda incrédula e perguntou:

- Não posso acreditar que seja o meu pai em pessoa!

- Sim, minha filha, sou eu.

- Mas como é possível? O senhor é uma pessoa do mundo fático, eu sou um personagem do mundo imaginário. Estamos num vórtice dimensional entre o real e o fictício?

- Eu, também, ainda não entendo muita coisa que me acontece. Lembro que em mil novecentos e setenta e cinco, numa linda manhã de primavera, atravessei um umbral luminoso e penetrei em outro plano, um universo paralelo. Eu sei que foi por excesso de amor, mas o médico falou para a Mafalda e o Fernandinho que foi infarto do miocárdio. Quando entrei no outro plano, senti uma grande leveza. Perdi imediatamente a noção de espaço e tempo. Perdi os referenciais e já não havia noite e dia, mas um “continuum” luminoso.

- Mas como é que está aqui? Até hoje, que eu saiba, nenhum dos personagens criado por você que morreu numa história retornou à vida. Escritores e pessoas reais também não voltam de lá. Espera aí! - Estou me lembrando agora. Tem aquele pessoal de Antares, da greve dos coveiros, que retornou para exigir o enterro dos seus corpos e simulou um julgamento no coreto da praça.

- Pois é. Tem sim. Mas o meu caso é diferente. Eu estava tranquilo, caminhando na imensidão do céu, lembrando o último romance que deixei pela metade, minha autobiografia num “Solo de Clarineta”, quando encontrei o Arcanjo Gabriel. Somos grandes amigos. Assim que me avistou, veio sorrindo, arrastando as esporas imaginárias, fez um gesto de atirar o chapéu para a nuca e falou:

- “Buenas e me espalho! Nos magros dou de prancha e nos gordos eu dou de talho”!

- Quer pelear comigo, Gabriel? – perguntei.

- Não. Claro que não. Só estava imitando o Capitão Rodrigo Cambará! Só para mexer contigo.

- Bah, Gabriel, tem dia que me bate uma saudade da minha gente!

- Uma boa notícia para ti. Por um momento vai abrir uma fresta temporal lá no umbral do ocidente. Tu poderás sair e visitar os teus familiares e criações no plano da forma.

Voltando à Praça Tiradentes - Clarissa estava ali meio absorta, encantada em ouvir o seu criador.

- Então fugiu de lá, pois está aqui!

- Não foi bem uma fuga. Uma concessão do meu Anjo Guardião.

- E como se sente aqui?

- Me sinto muito estranho! Mas, ao mesmo tempo, feliz. - Mudei de plano quando transpus o umbral, mas continuo com as faculdades de lá. Vejo e ouço tudo o que quero ver e ouvir. Se penso num lugar qualquer, dou duas piscadas rápidas e imediatamente já estou lá. Este deslocamento instantâneo, dá-se tanto no tempo como no espaço. Por falar nisso, não vai chegar atrasada na escola, nesse momento a diretora está indo pegar a sineta para bater o início das aulas. - Ela deixou de olhar para os pombos e voltou o olhar para ele. O banco estava vazio. Um segundo atrás ele pensou em Santa Fé, deu duas piscadas e chegou lá. No momento exato em que o Capitão Rodrigo se despedia da Bibiana, entregava o violão para ela guardar, amarrava a espada nos tentos do arreio e montava no Tostado. Acompanhou, sem ser visto, o cavaleiro até a casa paroquial. Quando ele gritou:

- Padre Lara! Padre Lara!

- Pronto, Capitão! Apeie, veio se confessar?

- Mas que nada, Padre Lara. Estou indo atacar o casarão. “Só queria me certificar que o amigo não estava lá. Não quero lastimá-lo”.

Deu de rédea na montaria e ficou frente a frente com o seu criador. De braços cruzados, de pé, olhar sereno, estava ali, nada mais e nada menos que o seu pai, Erico Verissimo.

- Papai, a que devo a honra da tua presença?

- Vim te ver, meu filho. Ultimamente ando perdendo o controle das tuas ações. Tu me saíste muito impetuoso e temerário. Te peço para não atacares hoje o casarão do Coronel Ricardo Amaral Neto. Estou com um mau pressentimento.
- Mas que nada, meu pai. Já não posso mais recuar. O meu destino já está escrito no “Tempo e o Vento”! E ademais: “Cambará macho não morre na cama”!

Pensou em Antares, deu duas piscadas e chegou lá bem quando os mortos subiam ao coreto da praça para fazerem o julgamento. Muitas acusações e denúncias foram feitas pelos mortos, que contavam entre eles o advogado João Paz e a matriarca D. Quitéria Campolargo. Quando viram ali seu próprio criador caíram em queixumes:

- Senhor Érico, nosso pai, veja em que encrenca nos meteu! - O autor calmamente respondeu:

- Agora tudo será resolvido. Vou terminar a greve. Mas os vivos vão persegui-los até o cemitério, onde finalmente serão enterrados pelos coveiros.

- Permaneceu ali mais uns minutos observando a debandada rumo ao cemitério. Depois olhou para o ocidente e teve muita vontade de ir a Bagé, já que estava aqui tão perto, não que a distância fosse problema agora, mas pelo impulso da curiosidade, queria visitar mais um personagem. Este não era um dos seus filhos, não fora criado por ele, mas seu neto, filho do Luís. Deu duas piscadas e chegou em frente ao consultório do Analista de Bagé logo depois do meio-dia. Entrou devagar e surpreendeu a Lindaura cochilando. Passou por ela e foi direto a sala do consultório. Entrou e deu de cara com o analista mais heterodoxo do universo. De boina preta, lenço vermelho, bombacha pampiana e alpargatas, deu um salto quando viu o Erico ali na sua frente:

- Crê puxa! Barbaridade! Mas não é que é o meu avô em pessoa! Espera aí! Quando eu nasci em mil novecentos e oitenta e um, lá na Feira do Livro em Porto Alegre, tu já tinhas partido lá para a estância de cima faziam uns seis anos. Como é que eu estou te vendo aqui agora?

- Quem tem que dar explicação aqui é tu, meu neto. Tu que és o analista.

- Certo. Deita-te aí no pelego, relaxa e desembucha. Não vou dar a tradicional joelhada nas “joias da família” em consideração a sobre idade e o grau de parentesco.

Conversaram por mais de uma hora, mas isso ficou em segredo de consulta. Despediu-se e foi a Porto Alegre, passando por Cruz Alta rapidamente para recordar sua infância e juventude. Na capital, andou pela Rua da Praia, chegou até a Livraria do Globo, onde, outrora, tivera vários momentos de glória. Tudo mudado, a Globo se mudou. Foi caminhando devagar até o ESPAÇO FORÇA E LUZ para visitar o museu com fotos e obras que legou a humanidade. Ficou muito emocionado e chocado ao mesmo tempo, de repente se deu conta: “Estou invisível para o vivos! As pessoas não me reconhecem. Aliás, não me veem e não me ouvem. Não consigo interagir com os vivos. Mas eu posso ouvi-los, vê-los, senti-los. Está quase na hora do umbral fechar-se. Se me atrasar, o Gabriel já me preveniu, vou vagar eternamente entre dois mundos. Mas ainda resta uns segundos para me despedir do ‘Senhor Embaixador’”.
Piscou duas vezes e chegou nas Antilhas, em Sacramento ao cair da tarde, bem na hora do fuzilamento. Uma multidão assistia aquele ato de justiçamento promovido pelo novo governo revolucionário. Após a rajada de sete tiros, o tenente, comandante do pelotão, aproximou-se, sacou a pistola e disparou o tiro de misericórdia. “O furo na têmpora marcou o ponto final de uma história”.

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Flávio da Luz de Oliveira

E-mail: osires998@gmail.com

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