Dos bastidores do teatro ao palco da vida


Flávio da Luz de Oliveira

Pablito era um menino da periferia. Ganhava a sobrevivência nas sinaleiras da cidade, no turno da tarde. De manhã frequentava a escola pública. Era um aluno assíduo e aplicado ao estudo e às tarefas escolares. Acalentava um sonho, ser ator. Tinha um ídolo secreto.

Morava numa palafita, sobre um igarapé no bairro Cidade de Deus, em Manaus. Ele, a sua mãe e mais duas irmãs menores. O seu pai fora para o sul em busca de melhores oportunidades e nunca mais voltou. O Pablito ia pedir moedas nas esquinas com sinaleiras, junto com duas crianças vizinhas no Igarapé, um menino e uma menina, que eram irmãos. Depois da hora do rush, voltavam para casa, revistando alguns sacos de lixo. É incrível o que a gente encontra no lixo em frente as casas bonitas das ruas do centro: chinelos, roupas quase novas, sapatos; comidas ainda em bom estado, pedaços de pão, frutas passadas, mas que não estão totalmente podres, que dá para aproveitar um bom pedaço. Repartiam entre si tudo que conseguiam arrecadar, as moedas e os produtos recolhidos no lixo. A sua mãe e suas irmãs esperavam ansiosas e com fome.

Lá no polo industrial e na Zona Franca de Manaus não valia a pena ir, era longe e as pessoas andavam tão apressadas que não enxergavam as crianças pedindo. Quando passavam perto do prédio do Teatro Amazonas, ele ficava para trás e se deixava encantar pela grandeza e beleza daquele prédio. Sonhava receber os aplausos do público elegante que frequentava o teatro. Um dia, ao passar por ali, após uma temporada de grande sucesso teatral, ao vasculhar o lixo, encontraram objetos de grande valor: uma “casca”, que é a fantasia do Bumba Meu Boi, pouco danificada e um estojo de maquiagem com os bastões quase inteiros. Imediatamente Pablito teve uma ideia.

Surgiu, então, naquela segunda-feira, na esquina da rua Amazonas com a Governador Eduardo Ribeiro, uma nova atração; era mais um arremedo de um teatro mambembe improvisado. O boi bumbá na sua dança folclórica característica perseguindo o famoso casal Pai Francisco e Mãe Catirina. Quando fechava o sinal, o trio passava na frente dos carros parados, fazendo alegorias até o outro lado. Enquanto o “miolo” do boi descansava, que era o Pablito, os amigos bem maquiados e caracterizados nas personagens famosas, passavam pelos carros recolhendo os donativos. As pessoas achavam muito engraçado aquela arte tão inocente e rudimentar, mas com forte conteúdo folclórico da região, que se enterneciam e doavam muitas moedas.

Paulo Fagundes era um ator brasileiro muito famoso nas telas dos cinemas, bem como nas telenovelas. Ao completar setenta anos, dos quais mais de cinquenta dedicados às artes cênicas, decidiu assumir uma aposentadoria voluntária das telas. De uma hora para outra simplesmente sumiu do meio social artístico da Cidade de São Paulo. Suas imagens continuaram aparecendo nos filmes nacionais e estrangeiros, telenovelas e documentários em que havia participado, mas a sua grande paixão era mesmo o teatro. Foi para a cidade de Manaus, sua terra natal. Hospedou-se no Hotel Tropical, enquanto tomava algumas providências.

Leu no jornal Diário do Amazonas o anúncio de venda de um barco tipo “Gaiola”, em ótimo estado de conservação e um preço bem em conta. Não que dinheiro fosse problema para ele, era viúvo há mais de dois anos e nunca tivera filhos. Tinha vendido suas propriedades em São Paulo e depositado todo o capital arrecadado diretamente no Banco da Amazônia. Comprou a embarcação e mandou reformar totalmente para servir de casa de espetáculo flutuante. Era um barco de porte médio com três pavimentos. No primeiro pavimento, à altura dos olhos de quem está no porto, onde seria adaptado um palco bem espaçoso e iluminado, além dos equipamentos de som e luzes para os efeitos especiais no momento das apresentações. Na parte de trás do palco ficaria a coxia e os camarins, tendo do lado direito um almoxarifado onde seriam guardados os figurinos e acessórios. No segundo pavimento camarotes com banheiros, camas e redes instaladas para os artistas e pessoas convidadas para passeios turísticos. No terceiro pavimento seriam a cozinha, refeitório, alojamento para a tripulação; mais uma ala reservada para escritório, dormitório e acomodação de objetos pessoais do Paulo.

Enquanto estava sendo executado o seu projeto por uma firma contratada, especializada e credenciada na construção e reforma de barcos, supervisionado por um engenheiro com especialização em construções de madeira, Paulo dedicou-se às visitas aos principais pontos turísticos da sua cidade natal. Muitos resquícios da pujança da época áurea da borracha, em que vieram da Europa materiais e até construções pré-montadas como o porto flutuante, o prédio do Mercado Público, o Grande Teatro Amazonas. Visitou também, as construções modernas como o hipermercado Carrefour Manaus Shopping, o Centro de Eventos e o estádio de futebol, a Arena da Amazonia Vivaldo Lima.

Numa tarde ensolarada do mês de maio, estava indo de táxi pela avenida Eduardo Ribeiro para visitar mais uma vez o complexo arquitetônico do Teatro Amazonas, talvez pela centésima vez, tinha perdido a conta. Quando parou na sinaleira, viu maravilhado aquela representação ligeira do Bumba Meu Boi feita pelo Pablito e seus dois amigos. Pagou o táxi, desceu ali mesmo e foi falar com aqueles “artistas” de rua. Convidou os três para irem com ele até a praça e fazerem um lanche. Os dois menores estranharam e não queriam ir. Mas Pablito, que já estava para completar quinze anos de idade, ouvindo aquela voz, olhou no fundo dos olhos daquele senhor elegante, soltou um grito de alegria e surpresa, reconheceu de imediato o seu grande ídolo das novelas da televisão. Sentaram-se na volta do carrinho da baiana Socorro e pediram quatro tacacás. Ela serviu nas tigelas de cabaça um caldo grosso de fécula de mandioca com camarões cozidos e temperados com jambu e cheiro verde.

Conversaram por mais de duas horas e ele ficou conhecendo melhor os seus novos amigos. Pablito tinha alugado uma casinha, perto da vila militar onde sua mãe tinha conseguido algumas casas para fazer limpeza a cada dia da semana. As suas irmãs, de quatorze e treze anos, trabalhavam no comércio da Zona Franca. A família dos dois amigos estava se mudando para a cidade de Manacapuru no outro lado do Rio. Pablito falou com emoção:

- Hoje é o nosso último dia de apresentação, estamos nos despedindo após sete anos e meio de convivência.

Despediram-se. Paulo entregou para Pablito um dos seus cartões rabiscados com o endereço do hotel e pediu para ir procurar-lhe no outro dia. Ele foi. Chegou lá às nove horas da manhã e Paulo estava esperando-o, fazendo o desjejum numa mesinha perto do aquário dos peixes-boi. Convidou Pablito, mas ele agradeceu, dizendo que já tomara seu café antes de sair. Conversaram por um longo tempo e no final Paulo propôs contratá-lo, ele e sua família para auxiliar no seu empreendimento de realizar um sonho antigo. Ele seria o secretário assistente do Diretor, a mãe, que era uma excelente cozinheira da comida típica da região, incluindo o famoso Pato a Tucupi, ficaria de supervisora da cozinha do barco. As duas irmãs seriam as camareiras. Pablito pediu para conversar com a mãe e as irmãs antes de dar a resposta.

Paulo passou os próximos dias entrevistando artistas locais, atores, cantores, músicos, para montar o seu primeiro espetáculo que seria a Lenda de origem do Bumba meu Boi baseada no folclore do Maranhão e Nordeste em geral, especialmente adaptada para a região amazônica.

Finalmente o barco ficou pronto, novo, pintado; com cromados, balaústres de madeira nobre e cortinas instaladas, inclusive as do palco com seus mecanismos modernos de aberturas e fechamentos por controle remoto. A inauguração deu-se no porto flutuante de Manaus. Foi um sucesso. Tiveram que repeti-lo por cinco apresentações a pedido do prefeito de Manaus, que fez questão de patrocinar através da secretaria de Arte e Cultura do município.

Assim passaram dez anos de espetáculos itinerantes em todas as cidades ribeirinhas de Santarém no Pará até Manaus, passando por Parintins no Amazonas. A população esperava ansiosa pelo barco do Grande Teatro CAPRICHOSO&GARANTIDO.

Pablito tornou-se um amigo e assistente inseparável de Paulo. Aprendeu tudo sobre a arte de representar e atuar no palco. Seu ídolo lhe ensinava, com paciência, sobre posturas, falas, o jeito de caminhar desde a coxia do teatro à entrada e deslocamentos no palco. Repetia sempre:

- Pablito, se queres ser um bom ator, estuda muito, decora o texto e seja fiel à originalidade. Se queres ser um ótimo ator introjeta o personagem e o assume como teu próprio álter ego. Mas se, realmente, queres ser um excelente ator e ficar reconhecido, deves morrer como homem na coxia e renascer personagem no palco - Como assim morrer? Recém comecei a viver de verdade!

- Não se preocupe, é só um estado de consciência alterado. É como se, ao pisar no palco, esquecesse tudo sobre si, como se nunca tivesse existido. Só o personagem vive. Mas, no final, o ator sempre ressuscita.

Paulo via em Pablito o filho que sempre sonhou e não teve. Pablito era o seu maior fã e via em Paulo o seu maior ídolo, e de certa forma, o pai que perdera muito cedo. Paulo, numa das estadas em Manaus, pegou duas testemunhas, foi ao Tabelionato e fez um testamento nomeando Pablito Gracindo Salvador o seu herdeiro universal. Chegando ao barco, entregou um envelope branco tamanho ofício, selado, para o Pablito guardar no cofre, para ser aberto após sua morte.

Era fim de maio, então, levantaram as amarras do cais de Manaus e rumaram para Parintins, a capital dos festivais de Bumba meu Boi. Quando chegaram, a ilha Tupinambarana já estava cercada de barcos de todos os tipos e tamanhos, desde gaiolas de quatro pavimentos a lanchas voadoras. Eles eram os encarregados de fazer o espetáculo de abertura do Festival. Paulo parecia um pouco nervoso, estavam na coxia e repassavam as últimas palavras do texto. Ele dizia sempre: “entre no palco como se fosse a primeira e última vez de sua carreira”. Pablito nunca entendera muito a frase, mas não quis perguntar. Quando faltava dez minutos para a sua entrada, Paulo sentiu uma forte dor no peito e dormência do braço esquerdo. Sentou-se no chão, procurou acalmar-se e controlar a respiração. Pablito chamou o médico e avisou o diretor geral. Paulo lhe disse:

- Não há mais tempo! Você me substituirá. Chama a maquiadora e pega o figurino de reserva.

Pablito subiu ao palco, já não era mais ele, mas o seu personagem que vivia. Fez tudo sem errar, os passos, a fala. Repetiu o mote que o seu ídolo fazia com tanta graça e elegância. Foi um sucesso. Quando a cortina baixou, não esperou que se levantasse de novo para mais aplausos. Correu para a coxia e constatou inconformado. O seu ídolo acabara de morrer pela última vez.

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Flávio da Luz de Oliveira

E-mail: osires998@gmail.com

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